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sábado, 25 de novembro de 2006

Fragmento orkutiano ( II ) - "Quem sou eu"


Não sei. E por isso eu leio, grito, vou pra lá e pra cá, ando em círculos. "Quem sou eu" deve estar em algum lugar, como um fóssil guardado para o futuro. Mas onde encontrar uma resposta, se nada traz impresso um aviso ou uma explicação do tipo: "Aqui está o que você é" ou "Era com isto que querias explicar-te a ti mesmo?" Quando me disseram que os livros guardam muitas respostas, comecei a ler. Era um caminho, ainda que se ramificasse em muitas direções. Não era o mais curto, o mais perigoso, nem o mais desafiador. Era um caminho como outro qualquer (a única diferença se faz sentir nos passos). E exatamente por isso, qualquer fragmento encontrado era um achado e tanto, se pudesse explicar ao menos um quase-nada de mim. Hoje, o grande mosaico do ser que se pretende montar um dia é só um punhado de fragmentos, recolhidos numa centena de livros e expostos nas mãos abertas:

1. Sou uma coisa entre coisas. Ferreira Gullar, no poema OVNI
2. Sou possivelmente/ uma coisa onde o tempo/ deu defeito. Idem
3. Eu próprio sou aquilo que perdi. Fernando Pessoa
4. Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. F.P. ("Apontamento")
5. Eu sou como eu sou/vidente/e vivo tranquilamente/todas as horas do fim. Torquato Neto ("Cogito")
6. Sou um sujeito cheio de recantos. Manoel de Barros, no Livro sobre Nada
7. Tem mais presença em mim o que me falta. Idem
(etc.)

"Mas às vezes acordo do longo sono e volto-me com docilidade para o delicado abismo da desordem" Clarice Lispector, em "A Legião Estrangeira"

Fragmento orkutiano ( I )





"Aonde eu quero chegar com todo esse caos? À esquina do impossível, a uma ordem das coisas que só se sustente por fragmentos de caos. Pequenas porções de caos formando uma ordem cujo valor só poderá ser medido pela beleza da ruína, a ruína-construção que eu quis definir um dia e não consegui porque o que eu chamo de 'caosciência' estava começando a emergir dos primeiros destroços da minha consciência. Eu vinha andando, num momento que era o agora-nunca-mais e aos poucos tudo o que fazia parte dos passos anteriores foi se desmoronando, caminho atrás de mim e todo o resto. Depois foi só dar meia volta e fazer o caminho inverso, até chegar lá longe, no píncípio da ruína.
Enfim, não sei explicar nada direito e, como disse o Manoel de Barros (um dos meus poetas favoritos): 'o que não sei fazer desmancho em frases'. É um jeito de se fragmentar..."

Agradeço à Medusa Insana por ter me lançado no abismo de uma pergunta...

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Dois apontamentos

Onde caberia um monte de explicações sobre o que é ser fragmentário, ter o pensamento em pedaços e ver a memória como uma ilha, fica melhor um poema do Fernando Pessoa; um poema que, se não me tranquiliza, ao menos me faz pensar em outros apontamentos...

APONTAMENTO

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Álvaro de Campos, 1929

Chaos et vita.

domingo, 19 de novembro de 2006

Primeiros cacos

"Com pedaços de mim eu monto um ser atônito"
Manoel de Barros, no Livro Sobre Nada

Eu sou fragmentário. A casa que eu quis fazer de pensamentos e planos começou a cair quando se erguiam as primeiras paredes. Do desmoronamento tirei palavras: algumas eu quis usar por desespero, outras já eram minhas, mas, destruídas, tomaram posse da desordem. Destas últimas eu ergui o caos, e não me perguntem que definições eu tirei dos dicionários porque já me esqueci faz muito tempo. Eu ergui o caos da poeira e fiz dele palavra minha, uma palavra para fazer frente a todas as outras. A ordem nascida da desordem, ou casca de ordem guardando o ovo-caos como um fóssil vivo. O caos deixado-em-si-mesmo ou exposto por dentro...

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Ignis meae mentis

Ignício

toda idéia
em seu começo
é o suave arremesso
de um coquetel
molotov (2004)

Fiz esse poema numa tentativa de explicar o poder que tem uma idéia no exato instante em que nasce. Pode ser a idéia mais boba, a mais descabida de todas, não importa, o efeito é sempre semelhante a uma chama, a qualquer coisa que lembre um fogo súbito. Daí o "ignício" - uma mistura meio doida de ignis (fogo em latim) e início, o incêndio primordial, que pode ser breve ou consumir tudo o que vier pela frente, dependendo da força da idéia.
E assim, de uma palavra lançada sem mais nem menos, veio a idéia de um blog. Numa palavra que trazia em si o fogo de uma idéia brotou o incêndio, e eu espero nele me consumir da maneira mais proveitosa. E eu já aproveito para tranquilizar aos poucos que tiverem a ousadia de ler as minhas palavras: nesse fogo vindo de idéias só o incendiário pode se queimar, a não ser, claro, que um ou outro leitor deseje o mesmo.
Bem, aí está um início explicado, e talvez isso baste por hoje. Uma dose de caos fica pra uma outra hora.
Ah, um pequeno lembrete para um possível leitor: é bom ter aí guardada uma reserva de paciência para palavrinhas mais do que estranhas...
Chaos et vita.