No fim
da tarde, o discurso arrebatado no templo evangélico em frente ao condomínio era
como o ruído áspero de um rádio mal sintonizado. Eu seguia para o supermercado e ouvia o ramerrão. A presença divina,
o dever, o êxtase, o velho teatro de fantoches… E pensei que viver é antes de
tudo uma função do corpo. Muito antes dos deuses, muito antes das ilusões que
erguemos como torres de transmissão, e mesmo muito antes de a nossa espécie criar
cidades e sistemas, a vida do corpo estava lá, árida e concentrada, lutando
contra o sol e contra a chuva, contra o frio e contra o calor, contra as doenças e os
desastres.E deus e deuses foram só dois entre os mil nomes pra fugir (inutilmente)
do chamado do corpo, da matéria de carne e sangue que não existe sem o
oxigênio, sem os nutrientes, sem os feitos e efeitos do Sol amarelo, sem as
enzimas e elementos básicos que ditam no fundo o nosso caminho sobre a
superfície sempre mutante do planeta.
No lapso
de tempo e de consciência que insistentemente chamo de eu, contra tudo e contra
tolos, persisto na insistência do chamado: viver é antes de tudo uma função do
corpo. Tudo o mais (ideais, ambições, projeções sub ou
superconscientes) não passa de tempo desmedidamente perdido, circunlóquios e tautologias ainda que às vezes ligeiramente elegantes.
Viver é
antes de tudo uma função do corpo. Vivamos.
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