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terça-feira, 8 de março de 2022

Acena com a cena...

 ainda vou voltar

como quem viajou pra muito longe

e esqueceu torneiras abertas e toalhas sujas

como quem saiu sem pagar as contas

ou como quem não sabia que 

no retorno

haveria ratos, poeira e insetos mortos

à espreita


ainda vou voltar

como quem foi ali comprar pão

e apareceu vinte anos depois

transtornado e de cabelos brancos

mas com uma desculpa esfarrapada

novinha em folha


voltar como quem foi ver

se estou na esquina


domingo, 15 de setembro de 2019

Anima mundi



No fim da tarde, o discurso arrebatado no templo evangélico em frente ao condomínio era como o ruído áspero de um rádio mal sintonizado. Eu seguia para o supermercado e ouvia o ramerrão. A presença divina, o dever, o êxtase, o velho teatro de fantoches… E pensei que viver é antes de tudo uma função do corpo. Muito antes dos deuses, muito antes das ilusões que erguemos como torres de transmissão, e mesmo muito antes de a nossa espécie criar cidades e sistemas, a vida do corpo estava lá, árida e concentrada, lutando contra o sol e contra a chuva, contra o frio e contra o calor, contra as doenças e os desastres.E deus e deuses foram só dois entre os mil nomes pra fugir (inutilmente) do chamado do corpo, da matéria de carne e sangue que não existe sem o oxigênio, sem os nutrientes, sem os feitos e efeitos do Sol amarelo, sem as enzimas e elementos básicos que ditam no fundo o nosso caminho sobre a superfície sempre mutante do planeta.
No lapso de tempo e de consciência que insistentemente chamo de eu, contra tudo e contra tolos, persisto na insistência do chamado: viver é antes de tudo uma função do corpo. Tudo o mais (ideais, ambições, projeções sub ou superconscientes) não passa de tempo desmedidamente perdido,  circunlóquios e tautologias ainda que às vezes ligeiramente elegantes.
Viver é antes de tudo uma função do corpo. Vivamos.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

terça-feira, 25 de setembro de 2012

recorte

"Acima de tudo, lembramos. Intransitivos, nós lembramos. E lembrar é viver na ilha da memória que é passado.  Quando a memória - quando qualquer memória - é partilhada com alguém, ela passa a ser habitável e é, de fato, habitada. Por algumas horas moramos num passado remoto e morto, com ligeiras incursões por um presente onde o único sentido são as palavras que a gente cria pra manter o fio aceso das coisas."   (21 de setembro)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

intervalo



O passado às vezes volta rabiscando linhas tortas. Mas não há, entre tantas soluções, nenhuma palavra capaz de esconder todos os escombros. O que foi resta - pesadamente - feito papel envelhecido com coisa dentro ou resíduo de memória. Mais nada.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

"Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem."
Clarice Lispector, no conto "O ovo e a galinha"

sábado, 19 de fevereiro de 2011

À la frontière du rêve

Alguém que sequer ouviu
o estampido o tiro ou o grito
acordou
inaugurando à beira da manhã
o mais pacífico
dos silêncios

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

meia-volta

volta e meia, esta dorzinha de cabeça
- pontadas do que poderia ou não já ter escrito
mas é no abandono de envelhecer
dias meses e anos
que, súbito,
se descobrem e se desdobram
sementes de outras geografias
tão mais acidentais quanto mais maturadas

revolta e meia
vitória sobre o tempo:
não morri
não fiquei sozinho
não se abriu o caos que eu queria
embora outra coisa
caos em câncer
herdado

o que veio
foi circular:
este gosto de viver
e esta satisfação tão antiga
de caminhar sobre a terra

como abandonar estas ilhas
tão nosso mundo?

se volto e aceno
é meio caminho
pra querer ficar

pois, então,
diga ao pouco
que fico

e me fixo

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Medidas para saber cair

começavam com a morte de alguém, qualquer coisa como um ruído, pessoa surpreendida
o rosto conhecido, depois, todo o resto, desconhecido porque morto
pensava-se que o vazio chegava em caminhões
todos se abasteciam
para a semana, o mês
pacotes completos, variados
eu não sabia de nada

o que eu queria era o avesso
mas não tinha lado nenhum, cara ou coroa pra onde olhar

jogava-se sem que fosse jogo
corria-se sem que houvesse caminhos

só assim era possível carregar desertos pra dentro de casa
e enfeitar com eles as paredes todas
arquitextura
insuperável deserto ao redor de quem o quisesse
(espelhos convergindo para mais desertos)

desertar era o aprendizado
único
e certo

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Residual

Anoitentorpecendo, quem sou eu pra negar?
Qualquer coisa se quebrou, mas eu juro que nada caiu. Não fui eu.
Este silêncio é de quem quis.
Fosse outra coisa, festa ou alarme, qual a importância?
Não vou contar a minha doença. A solução é contar as horas. Quando muito, os dias.
De dia em dia, dois anos. Ou quase.
Vivo a impaciência inseparável do meu sossego.
Meu tempo é este, este lado que ainda não dói. Esta fresta, por onde olho...
Tenho cartas de amor pra entregar. Tenho um amor pra viver, cada dia janela se abrindo.
Futuro é só quando, à tarde, eu espero a noite chegar, encontroencanto...
Me multiplico em páginas, quem lê (ela) sabe: amar requer um pedaço de mim em cada palavra...
Repor é preciso.
Repouso. Só descanso enquanto me fragmento...
Viver é grande. Ainda que o tempo seja pequeno.
Um pouco de sonho pra me desenhar...
Um dia ainda lembro que gosto tinha a vida no começo.
Enquanto isso, alguns passos.
Passei no vestibular.
Agora ouvi...

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

domingo, 10 de junho de 2007

Entre o que eu não disse e o que não vou dizer

"EU vivi, portanto, apenas de diário e no diário, e isso não foi de minha escolha nem de minha vontade, pois vontade é uma coisa tísica que diz respeito ao registro do sorvete e escolhas, aquelas que contam, foram feitas quando tínhamos os olhos vendados, quando ainda não tínhamos palavra nem sabíamos o que escolher significava."

Juliano Garcia Pessanha, em "Província da Escritura"

sábado, 26 de maio de 2007

Senhas e outros sonhos

começarde inflama: quero a idéia-silhueta de um jeito de ser que não precise de explicação EXPLICANSAÇO quero o delírio de existir apenas e apesar de, sem pesos e sem medidas
desmedidamente exato no que tenho de informe (este jeito de ignorar sabendo de antemão)

escrever é para os deliriosos o que amar é para os encantados mais realistas

eu queria porque queria divergir do que vejo e depois me divertir às custas da vertigem (que é verter os avessos)

eu não queria que olhos verdes tivessem sobre mim esse efeito de janela aberta pro infinito (o infinito mais próximo da minha imagem refletida)

pensei em escrever um desertoário, diário dos pequenos desertos de uma vida que só tem de deserto o gosto pela ausência

a vida não tem gosto mas eu gosto

saber que logo estarei morto é só um jeito de pôr o despertador no topo da vida
e amanhecer amanhecer amanhecer
e tecer com música e palavras o pedaço que falta

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Resíduo

Um resíduo do meu dia escorrendo para o sono...


PAUSAS

colecionar as vírgulas
abandonadas
partidas

as vírgulas que se quebraram
na pressa de contar
um segredo
ou no deslumbre
de um susto

delas extrair o tempo guardado
(para respirar?)
e exibir os sons:

pausas no silêncio

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Vertiginografias

a mulher que morreu dias atrás ardia no sol de uma quarta-feira sem mais pretensões que a de viver até apagar a idéia do fim fabricado o eco do último instante numa notícia arranhada em alto-falantes som é tudo o que sobra desdobramento e depois um eco um esboço de recordação mais adiante e por fim substrato artefato projeto atrasado nada esquecimento oblivio
as paredes da existência são cascas de ovo admirável mundo-ovo que mal tocado escancara aflições e esperanças e medos e fugas e dói não saber o que foge a essa análise que percepção que omissão vinda de outros séculos quem escondeu a palavra que abriria o cofre a frase que derrotaria essa esfinge feita de espera e ânsia
ninguém nas escadas e nos corredores ninguém na calçada ninguém capaz de passar por uma rua e ser para sempre alguém que passa por uma rua sempre alguém que passa por todas as ruas possíveis e impossíveis sempre alguém que pode estar aqui ou ali sem controle e se orientando sempre pela passagem das horas pela necessidade de estar aqui e depois em outra parte movimentando
porque viver jorra movimentos pra todo lado quem olha quem caminha quem corre quem move os braços alçando todos os gestos quem articula a pronúncia de cada palavra ah as medidas para se saber existindo!
construções e ruínas para figurar o ir-e-vir de todas as coisas quem omitiu o desastre o desacerto o desalinho não sabia nem nunca saberá o paradeiro das esperanças mais reluzentes

desalinhas


Dias e dias sem uma palavra. E quando volto, é com sono e dor de cabeça.

Nunca fui muito responsável ao pensar na idéia do meu futuro. E nem sei se é essa negligência que me deixa irritado só de sentir o peso que as pessoas dão a essa palavrinha. Futuro... FU-TU-RO... futuro! Vai ver eu me perdi com a idéia de que só é possível alcançar o intervalo de hoje, hoje-sempre...

Mas existem coisas que se arranjam com alguns passos firmes. E assim é que eu saí da incerteza e vim cair numa idéia nova, ânimo novinho em folha. Num intervalo de dois meses: um concurso, uma espera, um resultado (um bem-vindo segundo lugar) e uma contratação. Trabalho novo, pedaço de futuro se desenhando...

domingo, 21 de janeiro de 2007

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Dostoiévski explica ( I )


Sou como o Raskolnikhóf do Crime e Castigo. Só que, em vez de ter matado alguém, eu arranquei pedaços de mim e substitui por coisas alheias, um pensamento, um gesto, um jeito de agir e falar. Coisas alheias ou inventadas, pouco importa. De todo jeito, um crime...
O crime da idéia fixa.

"Abandonara por completo os seus trabalhos cotidianos e não queria preocupar-se com eles. Na realidade, não temia a dona da casa, por muito que pudesse tramar contra ele. Agora, ter de parar na escada, escutar todas as tolices daquela mulher, estúpida até o absurdo, e que não lhe interessavam absolutamente nada; todos aqueles disparates a respeito do pagamento, aquelas ameaças e lamentações, e, ademais, ter de falar, desculpar-se, mentir, não, preferia atirar-se como um gato pelas escadas abaixo e deixar-se cair ao abandono, contanto que não visse ninguém."

"Mas não tardou que voltasse a mergulhar numa espécie de profundo indiferentismo e, para sermos mais precisos, num completo alheamento de tudo, de tal maneira que caminhava sem fixar a atenção à sua volta e também sem querer fixá-la. Somente uma ou outra vez murmurava qualquer coisa por entre os dentes, obedecendo ao costume de monologar (...)"

Imagem: Matheus Nachtergaele, em cena do filme Nina (2004)