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domingo, 21 de janeiro de 2007

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Dostoiévski explica ( I )


Sou como o Raskolnikhóf do Crime e Castigo. Só que, em vez de ter matado alguém, eu arranquei pedaços de mim e substitui por coisas alheias, um pensamento, um gesto, um jeito de agir e falar. Coisas alheias ou inventadas, pouco importa. De todo jeito, um crime...
O crime da idéia fixa.

"Abandonara por completo os seus trabalhos cotidianos e não queria preocupar-se com eles. Na realidade, não temia a dona da casa, por muito que pudesse tramar contra ele. Agora, ter de parar na escada, escutar todas as tolices daquela mulher, estúpida até o absurdo, e que não lhe interessavam absolutamente nada; todos aqueles disparates a respeito do pagamento, aquelas ameaças e lamentações, e, ademais, ter de falar, desculpar-se, mentir, não, preferia atirar-se como um gato pelas escadas abaixo e deixar-se cair ao abandono, contanto que não visse ninguém."

"Mas não tardou que voltasse a mergulhar numa espécie de profundo indiferentismo e, para sermos mais precisos, num completo alheamento de tudo, de tal maneira que caminhava sem fixar a atenção à sua volta e também sem querer fixá-la. Somente uma ou outra vez murmurava qualquer coisa por entre os dentes, obedecendo ao costume de monologar (...)"

Imagem: Matheus Nachtergaele, em cena do filme Nina (2004)

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Efeito da insônia?

"De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra - Como um lápis numa península." Manoel de Barros, no Livro sobre nada

Eu queria ser claro ao dizer as coisas. Bem, é muito fácil encontrar o caminho da clareza e ir andando, depois de extrair dos destroços da minha vontade um "Fiat lux!" bem sonoro, como um grito pra marcar o início. Fácil porque, na verdade, eu uso complicações para distrair os outros da minha falta de jeito com as palavras. Como usar óculos escuros: basta deixá-los de lado quando se quer ver melhor...
E isso pretendia ser um desabafo na mesma linha das "confissões" feitas pelo personagem do García Márquez (ver o trecho do Memórias de minhas putas tristes). Enfim, tem que ser alguma coisa, que seja um desabafo.
Eu sou dissimulado. Para evitar a exposição dos meus cacos ou, o contrário, mostrar total constância, equilíbrio, escolho qualquer atalho entre, um meio-termo entre expor toda a ruína e representar a farsa da existência. Pensando bem, isso não é ser dissimulado, pelo menos não totalmente. Já não dá pra dizer o mesmo da minha desconfiança. Essa não se divide e nem é flexível como qualquer outro defeito que eu possa ter. É maciça, de pedra, embora não tão aparente como eu gostaria (e aqui já entro em contradição com o que disse sobre a dissimulação). E é assim: desconfio, logo existo, esse o passaporte para a minha compreensão do mundo (de parte dele)...
Bastaria um pouco mais - um pouquinho só - de ânimo para eu deixar bem nítido o esboço da minha misantropia. Mas estou cansado, vindo de umas sessões de insônia...
E só pra dar um gostinho de indiferença a tudo isso:

"Pouco me importa. Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa" (Alberto Caeiro)

domingo, 14 de janeiro de 2007

desertoásis

chuvisqueiro se estendendo lá fora umidade para os dias que virão secos
e eu que pintei de azul-mar a cerca que fiz nos fundos de casa
agora da porta em diante o meu olhar recorta um pouco de azul das tábuas e um pedaço de grama muito verde e muito alta por causa da chuva dos últimos dias
quem se habilita a cortar a grama úmida numa manhã de domingo?
e me lembro que chover era o acontecimento que me lavava a infância e fazia dela o grande deslumbramento de viver, a vida se fazendo líquida misturada à terra planta recém-nascida
hoje com uma pequena distração os pingos entram pela janela que alguém esqueceu aberta e é mais fácil pensar que a chuva faz a grama crescer demais do que ver os pedaços de deserto trazidos pelo tempo porções de areia soterrando antigas memórias

sábado, 13 de janeiro de 2007

Imago et verbum


"Ordem e Caos", Mauritus Cornelis Escher, litografia de 1950


"O Caos é a página onde a realidade é escrita.” – Henry Miller

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Desarticolado


vertigem para onde resvala o imensurável pedaços de memória amarrados feixe de lenha pra queimar um dia fogueira monumental do que guardo ( ardo tudo o que fui madeira guardada como espera de incêndio) ah os cacos dos dias que se foram dependurados na janela! enfeite desbotado prego velho que merda de aparências mal arquitetadas vive o grande projeto de ser qualquer coisa risco líquen muro esquina esta coisa de estar atrás dos olhos tudo o que sou é janela de ver a si mesmo em fragmentos e sei que vou morrer ah mas ilha cercada de morte por todos os lados tem de receber um náufrago nativo-estrangeiro seja lá o que for de que cor textura ritmo será feito o último instante e onde estacionar as memórias todas entalhar na madeira rabiscar num muro vejam fui aquele morto antecipado aquele cujos pedaços mal fossilizados ainda recendem a animal vivo vinculado a uma porção de matéria que se chamam pertences bugiganças tranqueiras essas coisas de que o uso e o desuso se nutrem por favor tirem tudo o que está nos arredores da minha retina não quero nada que me roube a atenção e no meio de um quase oásis-nada feito de ausência quero encontrar a fonte organismo-textura para a minha consciência

segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Trecho como um fragmento de espelho...


"Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio."
Gabriel García Márquez, em Memória de minhas putas tristes

Chaos et vita.