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segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Dois apontamentos

Onde caberia um monte de explicações sobre o que é ser fragmentário, ter o pensamento em pedaços e ver a memória como uma ilha, fica melhor um poema do Fernando Pessoa; um poema que, se não me tranquiliza, ao menos me faz pensar em outros apontamentos...

APONTAMENTO

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Álvaro de Campos, 1929

Chaos et vita.

Um comentário:

Anônimo disse...

eu adoro esse poema "apontamento"......desde a primeira vez que o li tive a imagem nitida da minha alma caindo e se partindo em cacos como um vaso.
Lia alto,diversas vezes, dançando,ouvindo,musica classica
fiz do poema mais produto de delirio.....ouvia o barulho da alma caindo meio estrondo, meio musica melancolica inquientante.....sensações escravizantes que me petrificaram num ser obsessivo........ahhhhhhhhhh alvaro de campos.......não sei como não comi literalmente este livro......